terça-feira, 5 de outubro de 2010

{rewind}

lembro-me de acordar sobressaltada. a cama estava aos soluços e as paredes sentiam-se tremer. pressentia-se um rebuliço, lá fora. levantei-me e corri para os braços da minha mãe. é só uma tempestade. ah, então está bem.

a porta da rua estava aberta e a janela da sala de jantar também [porque um raio pode entrar em casa e assim tem por onde sair, dizia a minha tia]. subi ao sofá e debrucei-me no parapeito. a casa dos meus tios, em trás-os-montes, fica mesmo em cima de uma montanha, rodeada por outras tantas montanhas... sim, eu acordara mesmo a tempo de assistir à soirée e ocupava o melhor lugar da sala.

o céu, qual tela pintada por um artista enraivecido: chicotadas de dourado e prateado rasgavam o negro e transformavam a noite em dia. a banda sonora, tenebrosa, ensurdecedora.

sai daí, rapariga, que é perigoso! mas, tia... pronto, está bem. [chata].

a minha mãe voltara-se a deitar. está frio, vou dormir. a minha tia, expressão fechada, parecia rezar. o meu tio, enfiado na cama... deixa-o lá, sabes que ele tem medo da trovoada. um adulto com medo da trovoada... [hihihi!!!].

o meu pai colocou meio copo de água em cima da mesa. em cima do copo de água, um pedaço de pão. em cima do pão, uma faca. é para cortar a trovoada. ah... cortar a trovoada. boa.

a tempestade começou a amainar e eu fui-me deitar que o sono começava a pesar-me nos olhos.

de manhã, acordei com o barulho do povo, na estrada. geralmente, aquelas pessoas falam alto, mas naquele dia, falavam ainda mais alto. pareciam agitados, nervosos... corri para a rua. a trovoada dessa noite destruíra quase todas as culturas. as vinhas, as oliveiras... depressa, porém, abstraí-me daquele lamento e olhei à minha volta.

as montanhas, com cores mais nítidas do que o costume. cintilantes. fechei os olhos e respirei fundo. o aroma... aquele que fica depois da chuva beijar a terra...

hoje, quando sinto o cheiro da chuva, lembro-me daquela noite. em que a minha tia rezava e o meu tio [medroso, hihihih] se escondia debaixo dos lençóis. e, principalmente, da mágica que o meu pai fez com meio copo de água, um pedaço de pão e uma faca:

ele conseguira cortar a trovoada...

para a fábrica de letras, sob o tema: o cheiro da chuva

25 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Artistas enraivecidos
Homens de medo escondidos
Outros que cortam trovoadas
Janelas de montes cercadas

Pensa que me engana
Com este ar de prosa
escondendo o poema
como a roseira esconde a rosa?

(quando trovejar forte
já sei o que fazer
pode não resultar
mas ninguém se fai esquecer
de eu assim tentar)

lapsus disse...

Adoro isto, simplesmente.

Paulo

cc disse...

Gosto tanto das tuas memórias e da maneira como as descreves. Deves ter tido uma infância muito feliz!

Madalena disse...

"o céu, qual tela pintada por um artista enraivecido: chicotadas de dourado e prateado rasgavam o negro e transformavam a noite em dia. a banda sonora, tenebrosa, ensurdecedora."

Adorei!

Johnny disse...

Alguém disse que á medida que os filhos crescem os seus pais vão passando de super-heróis a homens de meia-idade com uma toalha atada ao pescoço. Esse momento de cortar a trovoada foi um momento de super-herói, claramente.

Fê blue bird disse...

Amiga:
Um texto nostálgico, quase mágico, perfeito para a fábrica das letras.
Eu punha-me debaixo das mesas quando chovia e trovejava e rezava:
"Nª Srª da Conceição faça sol e chuva não :-)"
Num tempo em que ainda acreditávamos que bastava querer muito para conseguirmos mudar o mundo.

beijinhos

Poetic Girl disse...

Doces recordações diria eu! beijocas

Atena disse...

Sim não tenho duvidas que a tua infancia deve ter sido feliz... (Gosto de tudo quanto escreves que nos reporte a essa altura, mas este post, cheira mesmo a filme tipo "uma casa na pradaria".
Beijoka grande

mafaldinha disse...

Gostei muito deste post, como já vem sendo hábito. A tua forma de te reportares à tua infância é simplesmente magnífica. Gosto de cada um dos post com esta etiqueta. Fico à espera de mais!

Ritinha disse...

Que fofo :)

xoxinho

Miguel Ângelo disse...

E porque gostas de Pessoa, aqui fica ALberto Caeiro:

Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos ...
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...

Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...

Sentia-me alguém que nossa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!

(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós ...
Ali, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)

E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega.

Aquele abraço

mafaldinha disse...

Só agora é que me dei conta: se as culturas ficaram destruídas, não me parece que seja caso "da chuva beijar a terra...", parece mais um caso de violência doméstica, não???

Insana disse...

"Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças"
Charles Darwin


Bjs
Insana

Thê disse...

Tantas lembranças de infância. Linda, essa. Um beijinho :)

dandelion disse...

Parece que te vais encher de cheiro da chuva: não pára de chover e faltam 9 meses para o verão!!! Estou a ficar mesmo muito deprimida.

:|

Joana disse...

Adorei a parte final, o tio "medricas" e o pai que "corta a tempestade".

Unknown disse...

Na minha terra também se "corta" a trovoada! Este seu post deixou-me saudoso, amiga Susana!

anita disse...

Lindo texto, adorei, aliás como já é costume, eu adoro sempre tudo o que escreves!

Catsone disse...

Gostei imenso deste teu testemunho. Aos olhos de uma criança tudo é mais belo e poético até mesmo tempestades aterradoras.

bj

Brown Eyes disse...

Suzana não sabia essa história de cortar a trovoada. Eu, adulta, tenho terror da trovoada e admiro quem não tem mas, aqui o que interessa é a maneira como relataste esta noite de trovoada: excelente. Beijinhos

Mané disse...

Oh! A idade venturosa da infância! Onde há outra mais feliz e mais tranquila, mais sorridente - isto é, mais egoísta?... Em volta de nós podem suceder as piores catástrofes. Se elas nos não arrancam nem os brinquedos nem os bolos, não nos atingem de forma alguma... não as compreendemos sequer...
Quando muito, correm-nos lágrimas vendo chorar as nossas mães. No entanto, é só ainda vagamente que percebemos a dor humana. Por isso as nossas lágrimas secam depressa diante dos brinquedos. E se o quadro em que nos agitamos é risonho, a infância transforma-se-nos então num jardim maravilhoso. Para as crianças felizes, só para elas, existe realmente um céu - o céu dos seus primeiros anos.

Mário de Sá-Carneiro

::Gostei muito da forma como contaste esta passagem da tua vida::

su disse...

rogério, garanto-lhe que assim será. o seu gesto jamais será esquecido...

paulo, obrigada pela visita...

sim, catarina. foi mesmo muito feliz :)

madalena, o céu estava mesmo assim. ainda me lembro, como se tivesse sido ontem...

johnny, o meu pai foi, é e sempre será o meu super-herói :)

fê, querida... sim, ainda basta querer, basta acreditar...

sim, poetic girl, doces recordações como um pastel de nata.

atena, "casa na pradaria..." adorei :)

obrigada, mafaldinha. agradar-te é sempre uma honra :D

fofo é o teu novo bebé, ritinha... parabéns à mamã! a fotografia ficou linda... ele é mesmo tão pequenino...

miguel,obrigada pelas palavras de caeiro. adoro-o...

mafalda! O_O não tens emenda :X

insana, é isso...

obrigada, theresa :)

dandelion, a chuva também faz falta! e 9 meses passam depressa, vais ver!

joana, o meu tio não nada medricas, muito pelo contrário. foi bombeiro até há muito pouco tempo. a vida toda... salvou muitas vidas e muitas vezes sentiu a vida a fugir-lhe. é o meu outro herói :,D

caro leopoldo, a saudade deixa-nos com uma lágrima teimosa, não é?

obrigada pelas palavras, anita. és muito querida.

catsone, é isso. e só por isso, acho que vou ser criança, eternamente.

brown eyes, ironicamente, após essa noite fiquei com terror à trovoada, também. só há alguns anos é que consegui ultrapassar. ainda hoje, quando começa a trovejar, a minha mãe liga-me para saber como estou :D

mané, adorei o texto. obrigada!

just me, an ordinary girl disse...

as memorias de infancia... eu penso que sao tao mas tao importantes!!
as boas, fazem adultos fortes
as más, fazem adultos frageis

gostei da tua recordaçao e do modo de a contares...
e ,claro,espero que tenhas muitas mais destas!!
um beijo grande!!!

Sarita disse...

Muito bom!!!
Momento mágico.
Bjs...

meldevespas disse...

tão giro! tudo! o tio medroso (com quem me identifico imediatamente ihihih) a paisagem os cheiros as orações e principalmente esse golpe de mágico do teu pai! nunca tinha ouvido falr dessa opção: cortar a trovoada.
(mas na próxima já experimento)
Beijinho

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